quarta-feira, 27 de abril de 2011

Cavalos à la Rousseau - Antropologia e Meio Ambiente I

A partir de agora, começo a desenterrar alguns trabalhos feitos para a faculdade que acho que cabem bem neste blog. Para começar, parte de um trabalho feito para a disciplina de Antropologia e Meio Ambiente, do IFCH-Unicamp, ministrado pela profª Nádia Farage (monitoria de Rafael Barbosa), no 1º semestre de 2010.

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PS: Cliquem na legenda das imagens para verem os quadros em um tamanho decente!

Napoleão no campo de batalha de Eylau, 1807. Antoine-Jean Gros, 1808, Óleo sobre tela, 521 X 784 cm. Museu do Louvre, Paris, França 

Batalha de Austerlitz, 02 de dezembro de 1805. François Gerard, 1810, Óleo sobre tela, 510 X 958 cm. Musée National du Château, Versailles, França

O quadro de Antoine-Jean Gros, pintado em 1808, representa Napoleão Bonaparte no campo de batalha de Eylau na Polônia, onde, em fevereiro de 1807, o exército francês derrotou o russo em um choque sangrento que deixou mais de 50.000 feridos e mortos. Como não era raro, o quadro foi feito sob encomenda pelo governo francês, a partir da escolha do artista via competição. (MUSÉE DU LOUVRE, 2010)
O que nos cabe assinalar nesse quadro é como ele está embebido em uma atmosfera que vai ao encontro do Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Como se sabe, esse ensaio foi realizado para um concurso da Academia de Dijon em 1754, e previa que os concorrentes respondessem a seguinte questão: Qual é a origem da desigualdade entre os homens, e é ela autorizada pela lei natural? O texto de Rousseau não foi vencedor da competição e não agradou os jurados, sendo, no entanto, publicado pelo autor em 1755.
Nossa hipótese é de que a obra de Gros dialoga inteiramente com o escrito de Rousseau, por trazer em seu bojo uma temática que se foca na piedade. O quadro foi feito com cores escuras, em uma atmosfera de luto, onde como protagonista figura Napoleão Bonaparte altivo e misericordioso visitando o campo de batalha. O semblante de Napoleão é sério, e alguns comentaristas dizem que o imperador, estando em Eylau, teria exclamado: “Se todos os reis da terra pudessem ter essa visão, eles seriam menos propensos às guerras e conquistas” (NAPOLEON.ORG, 2010). O quadro é construído de forma a mostrar o horrível resultado das batalhas humanas, e a altivez francesa de portar-se piedosa diante dos acontecimentos. Não existe uma comemoração frente aos restos humanos ou cossacos agonizantes que resultam do combate, mas uma resignação pesarosa. Alguns soldados franceses visam ajudar combatentes russos feridos, que estranham o acontecido, como é possível ver principalmente pela dupla no campo direito do quadro. O cavalo em que monta Napoleão, por sua vez, traz em seu semblante um choque de repugnância frente ao cenário já descrito por Rousseau (1973, p. 259), e outras vezes figurado pelo artista – como, por exemplo, no quadro A Batalha de Abukir, de 1806.
O quadro exprime pela simbiose de sentimento entre os animais e humanos presentes a piedade como elo entre natureza e cultura:

Certo, pois a piedade representa um sentimento natural que, moderando em cada individuo a ação do amor de si mesmo, concorre para a conservação mútua de a espécie. Ela nos faz, sem reflexão, socorrer aqueles que vemos sofrer; ela, no estado de natureza, ocupa o lugar das leis, dos costumes e da virtude, com a vantagem de ninguém sentir-se tentado a desobedecer à sua doce voz; ela impedirá qualquer selvagem robusto de tirar uma criança fraca ou a um velho enfermo a subsistência adquirida com dificuldade, desde que ele mesmo possa encontrar a sua em outra parte; ela, em lugar dessa máxima sublime da justiça raciocinada – Faze a outrem o que desejas que façam a ti -, inspira a todos os homens esta outra máxima de bondade natural, bem menos perfeita, mas talvez mais útil do que a precedente – Alcança teu bem com o menor mal possível para outrem. Numa palavra, antes nesse sentimento natural do que nos argumentos sutis deve procurar-se a causa da repugnância que todo homem experimentaria por agir mal, mesmo independentemente das máximas da educação. (ROUSSEAU, 1973, p. 260).

O quadro, desta maneira, consegue condensar o argumento de Rousseau das ambigüidades que rondam o sentimento de piedade. Natural de homens e animais, é a piedade que serve de estopim para a aproximação humana em sociedade, e, portanto, como possibilitadora da cultura. No entanto, sendo o estado de sociedade como o propicio à violência e à degeneração humana, esta condição leva às tristes guerras que, mais uma vez, despertam o sentimento de piedade para com o vencido.
É claro que essa construção do artista também vinha responder a grande impopularidade que o combate de Eylau causara na França, mas, no entanto, ainda sofreu severas críticas por trazer uma visualidade da guerra como cenário negativo.
A singularidade do quadro de Gros pode ser observada quando comparada a outros quadros de batalha, como o de Gerard François, sobre a Batalha de Austerlitz.
Neste quadro, os combatentes não demonstram nenhum incômodo frente aos cadáveres resultantes da guerra, nem os cavalos mostram-se cuidadosos para que em seu galope desviem-se de restos mortais. Aliás, é possível observar o contrário, dois deles estão com suas patas ao alto, na iminência de pisar em soldados vencidos. A atmosfera geral é de alívio e celebração ainda entusiasta frente à batalha recentemente vencida, anunciada pela chegada de raios de sol através de nuvens escuras e a entrega do príncipe Nicolau Repnin à Napoleão.


Fontes específicas:


MUSÉE DU LOUVRE (Comp.). Napoleon on the Battlefield of Eylau. Disponível em: <http://www.louvre.fr/llv/oeuvres/detail_notice.jsp?CONTENT%3C%3Ecnt_id=10134198673225732&CURRENT_LLV_NOTICE%3C%3Ecnt_id=10134198673225732&FOLDER%3C%3Efolder_id=9852723696500815&baseIndex=45&bmLocale=en>. Acesso em: 25 maio 2010.

NAPOLEON.ORG (Comp.). KEY PAINTING - FIRST EMPIRE. Disponível em: <http://www.napoleon.org/en/essential_napoleon/key_painting/premier_empire.asp>. Acesso em: 25 maio 2010.

WIKIMEDIA COMMONS. The Battle of Abukir. Disponível em: <http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Gros_-_The_Battle_of_Abukir.png>. Acesso em: 15 jun. 2010.

WEB GALLERY OF ART (Comp.). Napoleon Bonaparte on the Battlefield of Eylau, 1807. Disponível em: <http://www.wga.hu/frames-e.html?/html/g/gros/7eylau.html>. Acesso em: 25 maio 2010.

ROUSSEAU, Jean Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. In: ROUSSEAU, Jean Jacques. Jean Jacques Rousseau: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 207-326.

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