sábado, 21 de janeiro de 2012

O Brasil deve barrar a entrada de imigrantes haitianos?

Texto completo do professor Omar Ribeiro Thomaz. A versão reduzida foi publicada hoje, na sessão Tendências/Debates da Folha de S.Paulo

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O Brasil deve barrar a entrada de imigrantes haitianos? 
Não.

Omar Ribeiro Thomaz
Professor do Departamento de Antropologia da Unicamp e Pesquisador do Centro de Conflitos, Catástrofes e Mudanças Ambientais da Unicamp
Sebastião Nascimento
Sociólogo, pesquisador do Centro de Conflitos, Catástrofes e Mudanças Ambientais da Unicamp


Mesmo que por diversas razões não deva, vem há anos tentando, com o mesmo insucesso de todas as barreiras contra a imigração mundo afora. 
Desde os meses seguintes ao terremoto de janeiro de 2010, o Ministério das Relações Exteriores vem anunciando a iminência de uma “invasão” de mais de 20.000 haitianos por ano. Dois anos depois, foram pouco mais que 3.500 os que chegaram e não necessariamente porque buscassem expressamente o Brasil quando partiram, mas porque, já estando em terras sul-americanas, viram a Guiana Francesa fechar suas fronteiras e as possibilidades de trabalho no Peru, no Chile e no Equador minguarem significativamente com a crise internacional. 
Chegaram solicitando refúgio e, como profissionais suficientemente qualificados, a possibilidade de ocupar um posto de trabalho na economia latino-americana mais carente de mão de obra. Somente se pôde passar a considerar ilegal a condição desses indivíduos depois que o Ministério da Justiça determinou que cessasse a emissão de protocolos de solicitação de refúgio em fevereiro do ano passado. Impossibilitados de circular e trabalhar pela medida, passaram a se acumular nas pequenas cidades em ambos os lados das fronteiras com o Peru e a Bolívia. Não terá sido a primeira nem há de ser a última vez que se verão lançados à clandestinidade e à precariedade por conta de decisões oficiais das autoridades brasileiras.
No momento, o governo insiste em mobilizar vozes mais ou menos oficiais para tentar convencer uma opinião pública sensibilizada pela situação calamitosa dos haitianos tanto no Haiti como na diáspora latino-americana que o estabelecimento de um limite de 100 vistos mensais para para a concessão de vistos para haitianos e a vedação de qualquer possibilidade de entrada legítima para os haitianos que já se encontram na região constituiria na verdade um medida humanitária em resposta às condições deploráveis vividas nas fronteiras terrestres do norte do país. Fora das câmaras de eco da política oficial, poucos entenderam como uma vedação poderia ser uma benesse e não uma restrição. 
Não há, no fundo, novidade alguma: para além de ignorar a especificidade dos ciclos migratórios haitianos (preferindo recorrer à denúncia vazia das famigeradas “rotas de tráfico humano”), o governo acaba por reapresentar, sob nova roupagem, a mesma diretriz histórica de cerceamento à imigração oriunda de determinados países ou regiões, independente da situação política enfrentada no país de origem ou das reais demandas da economia brasileira. Nesse episódio mais recente, o limite foi estabelecido ao sabor do arbítrio: não se apoiou em qualquer avaliação da demanda – certamente baixa se comparada com outros destinos possíveis que precedem o Brasil na preferência dos haitianos – e tampouco da dinâmica desta diáspora. 
O temor de que os recém-chegados tragam suas famílias é absolutamente infundado: a diáspora haitiana não surgiu com o terremoto, existe há décadas, e praticamente todas as famílias haitianas têm parentes espalhados entre os Estados Unidos, a República Dominicana, Cuba e outras ilhas do Caribe, França, México, Venezuela, Canadá e cada vez mais também em países africanos. Seus melhores e mais bem formados membros são enviados pelas próprias famílias a países que acabam por se beneficiar enormemente com o potencial criativo dessa rica comunidade diaspórica. 
Por outro lado, as remessas individuais de dinheiro do exterior constituem a única fonte segura de recursos para uma população acometida por sucessivas crises, particularmente deletéria no âmbito do sistema escolar, num país em que a educação é, em grande medida, privatizada e cara. Em meio à miríade de promessas de apoio externo e ao reduzido nível de aportes reais, as remessas da diáspora têm sido há anos os únicos recursos que efetivamente chegam ao destino certo, tendo representado não somente os fundos que mais prontamente estiveram à disposição de haitianos e haitianas após as sucessivas catástrofes recentes, como também constituem até o presente o grosso do investimento na reconstrução do país, enquanto os bilhões entregues à cooperação ou aos distintos braços das Nações Unidas se perdem na manutenção do próprio aparato internacional presente no país, bem como nos insondáveis corredores onde burocracia e corrupção se encontram. Se quisermos de fato apoiar a reconstrução do Haiti, a última coisa a fazer seria estabelecer qualquer barreira arbitrária à circulação de trabalhadores haitianos.
Logo após o terremoto, uma gigantesca onda de genuína solidariedade mobilizou a população brasileira em prol dos haitianos afetados pela catástrofe. Mas as estruturas governamentais e diplomáticas demonstraram não ter nem o preparo e nem a capacidade para lidar fosse com as ofertas de cá ou fosse com as demandas de lá. A pesada e ineficaz máquina burocrática brasileira é ainda mais surda e obtusa diante dos clamores de quem, além de não votar, ainda fala outra língua. 
No momento, o governo mobiliza seus canais de divulgação para reempacotar medidas que vem sendo estudadas há tempos como parte de um conjunto mais amplo de ampliação da seletividade migratória no Brasil como se fossem uma resposta rápida à vexatória cobertura da imprensa internacional sobre a situação calamitosa dos haitianos impedidos de deixar a região fronteiriça, um calvário que se tem prolongado por mais de um ano em grande parte dos casos. Para além da mal velada incitação à xenofobia contida em não poucas declarações de agentes governamentais no que diz respeito aos potenciais riscos representados pelos haitianos, as instâncias oficiais se negam a dialogar com as próprias organizações nacionais que procuram oferecer apoio aos haitianos e compreender sua situação e suas carências. 
A forma como o governo e seus agentes encaminham o debate revela um profundo divórcio com a sensibilidade da opinião pública nacional e recorre à tradicional disseminação de estereótipos e mistificações para evitar enfrentar-se com a necessidade de reformas profundas nas instituições voltadas para a absorção de imigrantes. 
Na mesma tacada em que se criam barreiras discricionárias à vinda de haitianos (e de outros estrangeiros oriundos de países em desenvolvimento), numa política restritiva que deveria envergonhar um país que nas últimas décadas tanto se beneficiou com as remessas de sua própria diáspora, o governo brasileiro aplaude a chegada de dezenas de milhares de europeus, para os quais serão criadas facilidades para contornar a burocracia. É assim que nos reencontramos com nossa tradição secular de promoção, pelo Estado, de uma migração seletiva. Não há diferenças significativas de qualificação entre os bem acolhidos europeus e os vilipendiados haitianos, mas sim uma seletividade míope, que abandona qualquer avaliação minimamente apurada dos perfis pessoais dos potenciais imigrantes para se concentrar unicamente no status de seu país de origem. Talvez seja assim que complexos de inferioridade e mecanismo de autocomplacência se reproduzam, mas certamente não é assim que uma política migratória moderna e eficaz se concretiza.

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